Função Social da Empresa e Recuperação Judicial: Visão do STJ

A empresa, em sua concepção clássica, era vista primordialmente como uma entidade voltada ao lucro, um fim em si mesma. Contudo, a evolução do direito empresarial, consolidada na Constituição de 1988 e materializada em legislações como a Lei nº 11.101/2005 (Lei de Recuperação e Falências), impôs uma nova e mais complexa dimensão a essa figura: a função social. Hoje, a empresa é compreendida como uma unidade de produção que gera empregos, recolhe tributos, movimenta a economia e impacta toda a comunidade ao seu redor.
É sob essa ótica que o instituto da Recuperação Judicial deve ser analisado. Ele não é um mero "perdão de dívidas", mas um mecanismo sofisticado que busca, acima de tudo, concretizar o princípio da preservação da empresa, conforme estabelecido no artigo 47 da referida lei. A falência, com sua consequente dissolução e perda de postos de trabalho, passou a ser a ultima ratio, a medida a ser adotada apenas quando a crise se mostra verdadeiramente insuperável.
Essa mudança de paradigma tem sido progressivamente absorvida e refinada pelo Poder Judiciário, especialmente pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que vem construindo uma jurisprudência moderna e pragmática sobre o tema. A visão que emerge é a de um Judiciário que atua não como um interventor na economia, mas como um garantidor do equilíbrio e da legalidade do processo de soerguimento.
A Soberania da Assembleia de Credores e os Limites do Controle Judicial
Um dos pilares dessa visão moderna é o reconhecimento da soberania da Assembleia Geral de Credores (AGC). O STJ tem reiteradamente decidido que a análise sobre a viabilidade econômica do plano de recuperação judicial é uma matéria de mérito, cuja decisão compete exclusivamente aos credores. São eles, afinal, os maiores interessados e os que melhor podem ponderar os riscos e benefícios de aprovar uma proposta de reestruturação.
Ao Judiciário, cabe o controle de legalidade do plano e do procedimento. Isso significa que o magistrado deve zelar para que o plano não contenha cláusulas que violem a lei (como a supressão de garantias sem a anuência do credor titular, por exemplo) e para que o processo de votação na assembleia respeite os quóruns e as formalidades legais. No entanto, não lhe é permitido substituir a vontade dos credores para julgar se um deságio é "alto demais" ou se um prazo de pagamento é "muito longo". Essas são questões de natureza negocial, inerentes ao processo ( STJ - REsp 2.006.044/MT).
Essa postura reflete uma maturidade institucional, reconhecendo que o processo recuperacional é, em sua essência, um ambiente de negociação coletiva, onde o papel do Estado-Juiz é garantir que o "jogo" seja jogado de acordo com as regras, e não decidir o resultado da partida.
O Cram Down como Instrumento para Coibir o Abuso de Direito
A soberania da assembleia, contudo, não é absoluta. A própria Lei 11.101/2005, em seu artigo 58, § 1º, previu um dos mais importantes mecanismos de controle do abuso de poder dentro da recuperação judicial: o cram down.
Este instituto permite que o juiz aprove o plano de recuperação mesmo que ele tenha sido rejeitado por uma ou mais classes de credores, desde que preenchidos certos requisitos legais. A jurisprudência do STJ tem ido além, admitindo a flexibilização desses requisitos em situações excepcionais, justamente para coibir o abuso do direito de voto.
Isso ocorre, por exemplo, quando um único credor, detentor da maioria dos créditos em uma classe, rejeita o plano não por sua inviabilidade, mas para forçar a falência e obter vantagens indevidas, em detrimento de toda a coletividade de credores e da própria função social da empresa. Nesses casos, o Judiciário, ao aplicar o cram down, não está se sobrepondo à vontade da assembleia, mas sim protegendo o processo contra a ação de um agente que atua de forma egoísta e contrária aos princípios que regem a recuperação ( STJ - REsp 1.337.989/SP).
Contudo, o STJ também é criterioso, entendendo que a mera rejeição, mesmo por um credor majoritário, não configura, por si só, abuso. Se a proposta do devedor impõe um sacrifício desproporcional (como um deságio de 90%, por exemplo), a recusa do credor em anuir é legítima e não justifica a aplicação do cram down ( STJ - REsp 1.880.358/SP).
Conclusão: Um Judiciário Atento ao Equilíbrio
A jurisprudência recente do STJ sobre recuperação judicial revela um notável equilíbrio. De um lado, prestigia a autonomia privada e a capacidade de negociação entre devedor e credores, consolidando a soberania da assembleia. De outro, reserva para si um papel ativo, mas estritamente legal, de guardião do processo, intervindo para coibir abusos e garantir que o princípio da preservação da empresa e sua função social não sejam esvaziados por interesses individualistas.
Essa visão moderna não enxerga a empresa em crise como uma "causa perdida", mas como um agente econômico potencialmente viável, cuja manutenção interessa a toda a sociedade. A recuperação judicial, nesse contexto, é a ferramenta que, sob a supervisão de um Judiciário atento e pragmático, permite que essa função social seja, de fato, preservada.