Superendividamento: Jurisprudência sobre Suspensão de Execuções

A Lei nº 14.181/2021, conhecida como Lei do Superendividamento, representou um avanço significativo na proteção do consumidor, criando um mecanismo para a repactuação global de dívidas e a preservação do mínimo existencial. No entanto, uma dúvida comum entre advogados é sobre o efeito imediato do ajuizamento da ação de superendividamento nas execuções e cobranças já em andamento.
Afinal, a simples propositura da ação é suficiente para suspender os processos executivos contra o devedor? A análise da jurisprudência recente mostra que a resposta, em regra, é não. A suspensão não é automática, mas pode ser obtida em momentos processuais específicos.
A Regra Geral: Inexistência de Suspensão Automática
O entendimento predominante nos tribunais é que o ajuizamento da ação de repactuação de dívidas, por si só, não paralisa a execução. Essa interpretação se baseia no Art. 784, § 1º, do Código de Processo Civil, que estabelece que a propositura de qualquer ação relativa ao débito não inibe o credor de promover a execução.
A jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) é clara nesse sentido:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. Execução de título extrajudicial. Decisão agravada que indeferiu o pedido de reunião de feitos e de suspensão da execução em razão de anterior ajuizamento de ação de repactuação de dívidas (superendividamento). Ausência de conexão entre as ações . Reunião de feitos que é descabida. Impossibilidade de suspensão do feito. Propositura de ação relativa a débito constante de título executivo que não inibe o credor de promover-lhe a execução. Inteligência do art. 784, § 1º, do CPC. Decisão mantida. Recurso não provido. ( TJ-SP — Agravo de Instrumento 2 020802-48.2024.8.26.0000 São Paulo, Relator.: Pedro Paulo Maillet Preuss, Data de Julgamento: 26/03/2024, 24ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 26/03/2024)
O Tribunal Paulista decidiu que a propositura de ação de repactuação de dívidas (superendividamento) não inibe o credor de promover a execução, sendo descabida a suspensão automática do feito executivo.
As Exceções: Quando a Suspensão das Execuções é Possível?
Embora a suspensão não seja um efeito imediato, a lei e a jurisprudência preveem situações em que ela pode e deve ocorrer.
1. Após a Homologação do Plano de Pagamento
Este é o momento processual previsto expressamente pela Lei do Superendividamento. Uma vez apresentado o plano de pagamento e havendo conciliação com os credores, a sua homologação judicial acarreta a suspensão das execuções em curso.
AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE EXECUÇÃO - SUSPENSÃO EM DECORRÊNCIA DE AJUIZAMENTO DE AÇÃO DE REPACTUAÇÃO DE DÍVIDAS - LEI DO SUPERENDIVIDAMENTO -AUSÊNCIA DE HOMOLOGAÇÃO DE PLANO DE PAGAMENTO DE DÍVIDA - IMPOSSIBILIDADE - MANTENÇÃO DA DECISÃO AGRAVADA. - O art. 104-A do CDC, prevê que a suspensão ou extinção das execuções em curso contra o devedor decorrerá da homologação judicial do plano de pagamento da dívida repactuada em acordo com os credores (§ 3º e § 4º, II) e, por isso, resta evidente que a simples propositura da ação de repactuação de dívida não acarreta a suspensão ou extinção automática das execuções em curso contra o consumidor superendividado.( TJ-MG — Agravo de Instrumento 31604493820238130000 , Relator.: Des .(a) Sérgio André da Fonseca Xavier, Data de Julgamento: 12/03/2024, Câmaras Cíveis / 18ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 12/03/2024)
A decisão esclarece que, conforme o art. 104-A do Código de Defesa do Consumidor, a suspensão das execuções contra o devedor ocorre com a homologação judicial do plano de pagamento, não sendo um efeito imediato da propositura da ação.
2. Concessão de Tutela de Urgência para Preservar o Mínimo Existencial
A via mais eficaz para obter a suspensão antes da audiência de conciliação é o pedido de tutela de urgência. Nesse caso, o advogado deve demonstrar de forma robusta que a continuidade das cobranças e dos atos de penhora coloca em risco a subsistência do devedor e de sua família, violando o princípio da dignidade humana e a garantia do mínimo existencial.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE REPACTUAÇÃO DE DÍVIDAS POR SUPERENDIVIDAMENTO. TUTELA DE URGÊNCIA. DIREITO DO CONSUMIDOR . DESCONTOS DE EMPRÉSTIMOS CONSIGNADOS E EM CONTA CORRENTE. TEMA 1.085. INAPLICABILIDADE . LEI 14.181/2021. ANTECIPAÇÃO DAS SALVAGUARDAS AO MÍNIMO EXISTENCIAL. DEVEDOR-CONSUMIDOR . DIGNIDADE HUMANA. ESTATUTO JURÍDICO DO PATRIMÔNIO MÍNIMO. SUSPENSÃO PARCIAL DA EXIGIBILIDADE DAS DÍVIDAS. DECISÃO REFORMADA . 1. Cuida-se de Agravo de Instrumento interposto contra a r. decisão que indeferiu o pedido de suspensão liminar dos descontos de empréstimos até o julgamento final de processo de repactuação de dívidas por superendividamento. 2 . O caso em questão não se amolda à discussão travada no Tema 1.085, pois não discute a legalidade dos descontos em si, nem a aplicação analógica dos limites legais de consignação, e sim a possibilidade de antecipação, em sede de tutela de urgência, das salvaguardas ao mínimo existencial do consumidor-devedor em situação de superendividamento, instituídas pela Lei nº 14.181/2021, dentre as quais a possibilidade de suspensão parcial da exigibilidade do débito oriundo de contratos de empréstimo. 3 . Não se trata de mera revisão dos contratos de empréstimo assumidos pela agravante, cujo objeto se circunscreva à discussão de abusividade de cláusulas, onerosidade excessiva ou legalidade dos descontos. Cuida-se, na verdade, de processo de repactuação ampla de dívidas de consumidor em situação de superendividamento, nos termos do artigo 104-A e seguintes do Código de Defesa do Consumidor. 4. Com as alterações empreendidas pela Lei nº 14 .181/2021, inaugurou-se nova sistemática para o concurso de credores, o inadimplemento e a mora do devedor-consumidor, tendo por base a vocação protetiva da legislação consumerista e como campo de incidência a situação fática diferenciadora - e extrema - do superendividamento. 5. Trata-se, portanto, de densificação legislativa do princípio constitucional da dignidade humana, sob o viés do estatuto jurídico do mínimo existencial, cuja noção está agregada à verificação de uma esfera patrimonial capaz de atender às necessidades básicas de uma vida digna (FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo . 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006). 6 . Institui-se o direito do consumidor-devedor à repactuação das dívidas nessa situação extrema, por plano de pagamento aos credores com prazo máximo de 5 (cinco) anos, admitidas dilação dos prazos de pagamento, suspensão da exigibilidade do débito, interrupção dos encargos da mora, redução dos encargos da dívida ou da remuneração do fornecedor, suspensão ou extinção de ações judiciais em curso e exclusão do nome do consumidor de bancos de dados e cadastros de inadimplentes. 7. Ainda que não haja previsão de suspensão imediata da exigibilidade das dívidas no processo de superendividamento, é possível a antecipação da tutela garantidora do consumidor nas situações concretas em que a espera pela audiência de conciliação ou resolução de mérito coloquem em risco o bem jurídico tutelado pela norma, qual seja, o mínimo existencial. 8 . Lado outro, a suspensão da exigibilidade das cobranças deve ser dar sob o pálio da proporcionalidade, tendo como medida o absolutamente necessário para a garantia do mínimo existencial. E, em consonância com a sistemática da repactuação de dívidas por superendividamento, a tutela de urgência se submete ao ?condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento? (art. 104-A, § 4º, IV, do CDC). 9 . No caso concreto, os descontos têm consumido a integralidade da renda mensal da agravante, e restou infrutífera a audiência conciliatória com os credores, razão pela qual foi deflagrado o procedimento judicial de revisão ampla e integração dos contratos e repactuação das dívidas. 10. Portanto, não é apenas plausível a alegação de superendividamento narrada, como presente o risco de prejuízo irreparável ao sustento da agravante e de sua família pelo transcurso do tempo necessário à instrução e julgamento da demanda. 11 . Concedida parcialmente a tutela de urgência para limitar pela metade os descontos referentes aos empréstimos consignados e para desconto em conta corrente, até o julgamento final do processo. 12. Agravo de Instrumento conhecido e parcialmente provido. Maioria . ( TJ-DF — Agravo de Instrumento 07170696620228070000 , Relator.: FÁTIMA RAFAEL, Data de Julgamento: 18/08/2022, 3ª Turma Cível, Data de Publicação: 06/09/2022)
Neste precedente, o tribunal concedeu a tutela de urgência para suspender parcialmente a exigibilidade das dívidas, reconhecendo que a espera pela audiência de conciliação poderia colocar em risco o mínimo existencial do devedor. A decisão destaca que se trata de uma medida para proteger a dignidade humana do consumidor.
3. Análise Centralizada no Juízo do Superendividamento
A jurisprudência também aponta que o pedido de suspensão deve ser, preferencialmente, analisado pelo juízo onde tramita a ação de repactuação. Este juízo possui uma visão completa e global da situação financeira do devedor, sendo o mais competente para decidir sobre a necessidade de paralisar outras ações de cobrança.
APELAÇÃO CÍVEL. GRATUIDADE DE JUSTIÇA. REQUISITOS COMPROVADOS. JUROS ABUSIVOS . MATÉRIA NÃO APRECIADA NA ORIGEM. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. SUSPENSÃO DA AÇÃO MONITÓRIA PELO AJUIZAMENTO DA AÇÃO DE SUPERENDIVIDAMENTO. PREJUDICIALIDADE EXTERNA . NÃO COMPROVADA. ANÁLISE DA SUSPENSÃO NO PROCESSO DE REPACTUAÇÃO GLOBAS DA DÍVIDAS. OBRIGAÇÃO LÍQUIDA. CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO COM O EXTRATO DE EVOLUÇÃO DO DÉBITO . 1. Deve ser deferido o benefício da gratuidade de justiça quando comprovado que o requerente não possui condições de arcar com as despesas processuais sem comprometer seu mínimo existencial e de sua família. 2. A tese de abusividade de juros não deve ser conhecida quando a parte não alega a matéria em primeiro grau, sob pena de supressão de instância e violação ao duplo grau de jurisdição . 3. A ação monitória visa a formação de título executivo judicial para cobrança de obrigação. Pode ser proposta por aquele quem afirmar, com base em prova escrita sem eficácia de título executivo, ter direito de exigir do devedor capaz o pagamento de quantia, entrega de coisa ou o adimplemento de obrigação de fazer ou não fazer. 4 . Paralelamente, a Lei 14.181/2021 (Lei do Superendividamento) possui, entre outros propósitos, o de proteger as pessoas que se encontram em situação de superendividamento. A norma acrescenta ao Código de Defesa do Consumidor ( CDC) direitos básicos concernentes à garantia de práticas de crédito responsável e à preservação do mínimo existencial na repactuação de dívidas e na concessão de crédito (art. 6º, XI e XII) . 5. No processo de repactuação global de dívidas (superendividamento), o juiz deve, necessariamente, analisar suspensão do curso das ações executivas e de conhecimento relativas a cobrança de mútuos bancários. 6. O Código de Processo Civil dispõe que há suspensão da execução quando a sentença de mérito depender do julgamento de outra causa ou da declaração de existência ou de inexistência de relação jurídica que constitua o objeto principal de outro processo pendente (art. 313, V, a e 921, I, do Código de Processo Civil- CPC) 7. A análise sistemática do ordenamento jurídico indica que a suspensão de ações monitórias e execuções sob argumento de superendividamento deve ser analisada - prioritariamente - no âmbito do processo global de repactuação de dívidas (arts 104-A a 104-C, do CDC) até porque se permite visão mais ampla da situação do devedor. 8. Para o Superior Tribunal de Justiça "a suspensão do processo em virtude de causa de prejudicialidade externa não ostenta caráter obrigatório, cabendo ao juízo local analisar a plausibilidade da paralisação, a depender das circunstâncias do caso concreto . Nesse sentido: AgRg no AREsp 577.434/ES, 2ª Turma, Rel. Ministro Humberto Martins, DJe 05/12/2014; REsp 1240808/RS, 2ª Turma, Rel. Ministro Castro Meira, DJe 14/04/2011" . 9. Diante desse quadro, a suspensão em autos da ação monitória possui caráter excepcional. Não se vislumbra qualquer justificativa excepcional para suspensão da presente ação (art. 313 do CPC). 10. Resta provada a liquidez da obrigação quando o credor traz aos autos a cópia da cédula de crédito bancário e o extrato de evolução de dívida. 11. Recurso desprovido . ( TJ-DF — Apelação Cível 07373778620238070001 1889692, Relator.: LEONARDO ROSCOE BESSA, Data de Julgamento: 10/07/2024, 6ª Turma Cível, Data de Publicação: 24/07/2024)
O acórdão indica que a suspensão de ações de cobrança deve ser analisada no âmbito do processo global de repactuação de dívidas, pois permite uma visão mais ampla da situação do devedor, sendo uma medida de caráter excepcional nos autos da ação monitória ou de execução.
Conclusão e Estratégia Processual
Em síntese, a estratégia processual mais eficaz para o advogado que atua em casos de superendividamento não é contar com uma suspensão automática. O caminho mais seguro é requerer ativamente uma tutela de urgência na petição inicial da ação de repactuação, com pedido expresso de suspensão das execuções e de limitação de descontos em folha de pagamento.
A petição deve ser fundamentada com provas concretas do superendividamento e do comprometimento do mínimo existencial, utilizando os precedentes judiciais que reconhecem essa possibilidade como uma medida de justiça e proteção à dignidade do consumidor.
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Aviso Legal: Este artigo tem caráter meramente informativo e não substitui a consulta a um advogado. Cada caso possui suas particularidades e deve ser analisado por um profissional qualificado.